Cada uma num CEP
As amigas estão longe e eu sinto falta de quando todas ainda moravam na mesma cidade
*Para ler ao som de Kilário, de preferência longe do horário de dormir.
"Guria, escuta isso aqui", diz a minha amiga Erika na mensagem de Whatsapp. Na sequência, recebo dois áudios curtos, um seguido do outro. Não posso ouvir as mensagens agora, mas fico num misto de curiosidade e preocupação. São quase nove da noite. O que ela está falando nesses cinco e oito segundos? Dou o play.
"Kilário, raiou o dia, eu vi chover em minha horta" ela canta no primeiro áudio. "Ai, ai, meu deus do céu, quanto eu sofri ao ver a natureza morta", o outro áudio toca na sequência. Filha da mãe.
Essa é uma piadinha interna entre nós duas. A Erika sabe que eu não gosto de ouvir essa música, porque ela é uma daquelas canções-chicletes, que grudam na minha cabeça sem que eu queira. Ela também sabe que eu detesto ainda mais escutar essas coisas perto da hora de dormir, porque passo boa parte da madrugada com o refrão incompleto martelando na mente, quase como uma trilha sonora dos sonhos. Ela fez de propósito.
"Achei que você tinha alguma coisa importante pra me falar. Que óóódio", respondo. Digo que estou brava, mas é mentirinha. Eu vou ficar com essa música grudada na minha cabeça? Infelizmente sim. Ela vai atrapalhar o meu sono? Aham. Mas mesmo assim adorei que minha amiga usou a música como pretexto para puxar assunto. A Erika não mora mais em Curitiba e eu sinto saudade da nossa convivência.
Ela não é a minha única amiga que se mudou nos últimos anos, várias delas deixaram a cidade e por isso os nossos encontros costumam ser mais escassos.
No passado, reunir as meninas era uma coisa muito mais fácil. Se alguma coisa acontecesse no trabalho, um simples aceno era suficiente para que as amigas do escritório levantassem de suas mesas e fossem à cozinha coletiva para conversar. O assunto evoluiria, até que alguma dissesse "preciso entrar em reunião" e as outras olhassem para o relógio lembrando que também tinham coisas para fazer. "Vamos na Vicente depois do trabalho?", perguntaria uma e todas concordaríamos. O resto da fofoca seria contada e discutida até tarde no bar, na companhia de uma fatia de pizza e um chopp.
Meu grupo de amigas da faculdade organizou um esquema para garantir a convivência mesmo depois da nossa formatura: um jantar mensal, para colocar o papo em dia. Além disso, também criamos a nossa Ceia, um evento de final de ano que todas levamos muito a sério. Decoramos a casa, caprichamos no cardápio, trocamos presentes, ficamos até altas horas conversando sobre a vida.
Muitas das amigas desses dois grupos se mudaram. Estão em São Paulo, Santa Catarina, Bahia e Nova Zelândia. Outras se tornaram nômades digitais e estão ora na Ásia, ora em algum país da América Latina. O café no meio da tarde e o jantar de toda terça-feira do mês já não acontecem com tanta facilidade.
Será que essa debandada tem relação com a nossa idade? Será que é um movimento pós-pandêmico? Fico surpresa ao ver que tanta gente saiu de Curitiba. Depois percebo que, na verdade, as pistas de que isso aconteceria sempre estiveram ali, só eu que não prestara atenção. Uma dizia não se identificar com o frio, a chuva, as pessoas da cidade. Outra falava do sonho de morar na praia. Várias delas vieram estudar em Curitiba e emendaram a sequência UFPR - estágio - primeiro emprego, sem nem pensar muito a respeito.
Fico muito feliz ao ver uma amiga encontrando o seu lugar no mundo, se instalando numa cidade que a preenche, realizando o sonho do passaporte com vários carimbos. Mas a verdade é que sinto saudade dos encontros espontâneos de quando todo mundo morava perto.
Cada uma dessas amigas foi testemunha ocular de um período importante da minha história. Aliás, não só testemunha, mas também protagonista dos mesmos dramas que eu. Fomos nas mesmas festas, dividimos as mesmas caronas, roupas, drinks e colchões infláveis baratos. Tivemos os mesmos professores, provas, trabalhos e chefes. Entramos juntas na fase adulta da vida.
Sinto falta de quem eu sou quando estou com essas amigas. Posso fazer o que quero na presença delas, ficar à vontade para ser idiota: elas já me viram em situações tão vergonhosas, que nada as surpreenderia. Sinto saudade e felicidade na mesma medida. Adoro ver como elas estão resolvendo a vida, construindo suas próprias famílias, realizando seus sonhos.
Há alguns meses, uma de minhas amigas deu à luz, foi a primeira do nosso grupo a ter bebê. Em meio a contrações, ela pediu para que o marido nos encaminhasse notícias do parto. Cada uma no seu CEP, vibramos com as atualizações vindas lá de Salvador. Foram horas com mensagens sobre dilatação e doula e analgesia, até que recebemos a que mais queríamos: nasceu! É uma menina!
Uma das amigas mandou sua foto segurando uma taça de vinho, brindando ao nascimento da bebê. Na sequência, cada uma de nós a copiou em sua própria casa. Selfies com vinho rosé, cerveja, gin. Todas emocionadíssimas com a chegada da Liv, essa criança que foi tão sonhada e desejada.
Nós já decidimos a data da nossa Ceia deste ano. Estamos ainda mais ansiosas para o encontro, porque queremos pegar a nova participante mirim do grupo no colo. A integrante de Auckland vai se conectar por vídeo — o Oceano Pacífico e o fuso são apenas detalhes para quem quer matar a saudade. As distâncias geográficas existem, mas nós vamos continuar dando um jeito de estreitar a amizade.
Espero que para sempre.
Nem que seja com uma música chiclete.




Me emocionei. Fico feliz em ver que o que é verdadeiro encontra sua forma de se fazer presente. <3
Esse me pegou de jeito. 🥹